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Saúde Mental: Entre os Estigmas e as Desigualdades

Nos tempos modernos, sobretudo, desde o início da pandemia de COVID-19, a saúde mental tem ganhado destaque nas conversas públicas e pautas sociais. Com o confinamento, problemas psicológicos aumentaram drasticamente. Em 2022, a Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgou, por meio de um resumo científico intitulado Saúde Mental e COVID-19: Evidências iniciais do impacto da pandemia, que, no primeiro ano da crise sanitária, a prevalência global de ansiedade e depressão aumentou em 25%. Sem dúvidas, o período pandêmico deixou várias marcas para as pessoas. Muitos perderam entes queridos e passaram a sofrer transtornos pós-traumáticos, jovens passaram a adolescência dentro de casa, trabalhadores perderam seus empregos, além de outros inúmeros problemas que surgiram.

Mesmo com a crescente discussão sobre questões de saúde mental, ainda pode haver uma certa resistência e preconceito por parte de algumas pessoas. A psicoterapeuta clínica Jayanne Almeida, que tem como foco a abordagem analítico-comportamental (AC), afirma: Fico muito feliz que isso (preconceito) tenha diminuído, mas ainda sei que há uma grande parte. Muitas pessoas ainda veem a psicologia com a famosa frase: ‘Eu não sou louco para ir a um psicólogo’. A especialista também aponta que a falta de conhecimento sobre psicologia e terapia é um fator que contribui na manutenção desse estigma: É importante entender o que é a psicologia, como funciona a terapia, entender a abordagem. Quando falamos de terapia, de psicólogo, sempre vem a questão da psicanálise e a questão de Freud, mas vai além dele.(...) Há também muitas outras coisas envolvidas, mas acho que a informação é o que mais falta.

Jayanne Almeida - Arquivo Pessoal

Psicofobia é o nome dado ao preconceito contra pessoas que sofrem de transtornos mentais. Segundo o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), o termo psicofobia é um neologismo criado pela Associação Brasileira de Psiquiatria, que teve seu presidente Antônio Geraldo da Silva como criador, desenvolvedor e propagador. Este não é um termo técnico da psiquiatria, entretanto, é amplamente empregado para retratar o estigma e a desinformação que envolvem questões de saúde mental. No Brasil, o dia 12 de abril é celebrado como o Dia Nacional de Enfrentamento à Psicofobia.

Em entrevista à CNN Brasil, o médico psiquiatra Guilherme Spadini, professor convidado de Psicologia Médica da medicina USP afirma que existe, em torno dos pacientes psiquiátricos, “aura de imprevisibilidade, de que a pessoa é fraca”. O especialista diz também, que a falta de conhecimento é a principal causadora do estigma. O portal aponta que em algumas situações o estigma pode vir de dentro de casa, pois os pais costumam ter dificuldades em aceitar que os filhos sejam pacientes psicológicos. É uma má notícia para os pais, como se tivesse algo de errado. É difícil lidar com o fato de que seu filho possa estar em sofrimento. A gente vive em um mundo em que precisamos estar felizes o tempo todo e demonstrar essa felicidade. Não é fácil aceitar o quanto da vida é sofrimento, e para os pais muitas vezes isso se traduz como culpa, complementa Spadini.

A população brasileira é uma das mais afetadas por questões de saúde mental em todo o mundo. Segundo o último grande mapeamento global de transtornos mentais, realizado pela Organização das Nações Unidas (ONU), o Brasil lidera o ranking mundial como população mais ansiosa. Mais de 18 milhões de brasileiros sofrem de transtornos de ansiedade, o que representa aproximadamente 9,3% da população. Além disso, o país é o que possui maior prevalência de depressão na América Latina e o segundo com maior prevalência da doença nas Américas, segundo a OMS.

Dados divulgados pelo Ministério da Previdência Social revelam que em 2024, o Brasil teve mais de 470 mil trabalhadores afastados de seus cargos devido a transtornos mentais. É o maior número já registrado em dez anos. As informações, obtidas pelo g1, revelam que houve um aumento de 68% dos casos em relação ao ano anterior, quando mais de 280 mil afastamentos foram contabilizados. De acordo com o portal, psiquiatras e psicólogos apontam que o recorde de afastamentos está relacionado às cicatrizes deixadas pela pandemia, à situação do mercado de trabalho e a outros fatores.

Diante da crise de saúde mental, o governo federal tomou medidas mais duras. Em agosto de 2024, o Ministério do Trabalho e Emprego anunciou a atualização da NR-1, que é a norma a qual estabelece diretrizes que assegurem ambientes de trabalho seguros e saudáveis para os trabalhadores. Com a mudança, o Ministério do Trabalho e Emprego passa a fiscalizar os riscos psicossociais no processo de gestão de Segurança e Saúde no Trabalho (SST). A nova versão da NR-1 entraria em vigor em 26 de maio de 2025, entretanto, entrará somente em 26 de maio de 2026. Conforme anunciado pelo ministro do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho, o primeiro ano terá caráter educativo e orientativo, permitindo a adaptação gradual das empresas às novas exigências.

Os tratamentos de questões mentais, como depressão e transtornos de ansiedade, por exemplo, podem envolver, principalmente, psicoterapia (individual, em grupo, familiar ou conjugal) e medicamentos, como antidepressivos, antipsicóticos, ansiolíticos e estabilizadores do humor. Todavia, observa-se que o acesso não é igual a todos. Em 2023, a pesquisa Panorama de Saúde Mental, co-idealização do Instituto Cactus e AtlasIntel relatou que somente 5% dos brasileiros fazem psicoterapia, sendo que os que mais aderem à modalidade são jovens, estudantes, brancos, mulheres e pessoas com renda mais alta e maior escolaridade. Perceptivelmente, a pequena parcela da população que tem acesso à psicoterapia, é majoritariamente formada por pessoas de mais recursos.

Já no que se refere aos medicamentos como tratamento desses transtornos, a mesma pesquisa apontou que 16,6% dos brasileiros (1 a cada 6) fazem uso contínuo. Nesse cenário, destacam-se principalmente alguns grupos vulneráveis, como pansexuais, transgêneros, assexuais, pessoas de recursos financeiros e escolaridade menores. Há uma significativa disparidade no acesso a diferentes formas de tratamento de questões mentais.

Apesar de muitas faculdades oferecerem serviços gratuitos como, por exemplo, atendimento psicoterapêutico, ainda vemos que há limitações para conseguir atender as necessidades da população de baixa renda como dificuldades para chegar no local, seja por falta de tempo ou de dinheiro para a locomoção. Quando penso em saúde pública, o atendimento no CAPS por exemplo, existem dois pontos importantes a serem considerados. Primeiramente, o CAPS disponibiliza psicólogos para atender qualquer pessoa que procure atendimento psicoterapêutico. No entanto, me parece que falta acesso à informação e incentivo ao cuidado com a saúde mental. Não vejo os veículos de mídia engajados nessa tema. Com frequência vejo que há banners e comerciais sobre abuso de substâncias, canais para denúncias de abuso e negligências contra crianças, mulheres e idosos. Posso estar enganada, mas não vejo o mesmo esforço sendo direcionado para a saúde mental. Além disso, acredito fortemente que a falta de tempo é um dos principais fatores para as pessoas de baixa renda não procurarem esse tipo de serviço. Isso porque grande parte da população tem outras prioridades, como uma longa jornada de trabalho, o cuidado com a família e as tarefas domésticas. Dentro da rotina dessas pessoas, é difícil se permitirem buscar o autocuidado, mesmo sabendo que tem serviço gratuito, porque os horários não fecham ou por vergonha de procurar ajuda. Existe, também, a falta de apoio da família. Conheço diversos casos de pessoas que se sentem julgadas por mostrarem interesse em buscar ajuda psicológica. Muitas vezes seus familiares dizem não ser necessário. Podemos dizer que parte da falta de acesso ou da baixa procura por atendimento psicoterapêutico vem do medo de ser julgado como uma pessoa que depende de algum profissional para sentir que tem domínio das suas capacidades mentais. Mas, com toda certeza, os principais motivos para a falta de acesso é a escolaridade e o poder aquisitivo. Para que possamos ver um maior engajamento da população pobre, é necessário mais investimento e incentivo à busca por cuidado em saúde mental. Nas escolas, principalmente, é fundamental investir em uma comunicação mais próxima com alunos e funcionários sobre quando procurar ajuda psicológica. Certamente, muitos dos desafios que são enfrentados diariamente podem ser melhores compreendidos e, por vezes, aceitos como situações desafiadoras no curso da vida quando temos onde procurar ajuda, aponta a psicoterapeuta Daniele Saavedra, a qual foca na abordagem da psicoterapia integrada.

Daniele Saavedra - Arquivo Pessoal

O relatório nomeado A economia do Burnout: pobreza e saúde mental, divulgado pela ONU em 2024, destaca que pessoas em situação de pobreza têm três vezes mais chances de desenvolver transtornos mentais, como ansiedade e depressão. O estudo revela que cerca de 11% da população mundial sofre com algum problema de saúde mental. Olivier De Schutter, relator especial da Organização das Nações Unidas e autor do relatório, afirma que essa problemática relaciona-se à obsessão pelo crescimento da economia e busca de riqueza, o que leva pessoas a se submeterem a jornadas exaustivas e condições precárias de trabalho. Quanto mais desigual é uma sociedade, mais as pessoas da classe média temem cair na pobreza e com isso desenvolvem quadros de estresse, depressão e ansiedade, afirma De Schutter, em entrevista à ONU News, em Nova Iorque (EUA).

É inegável a influência que as redes sociais têm no adoecimento mental da população. Se por um lado elas facilitam o acesso à informação, por outro, elas permitem criar nas pessoas a obsessão pelo dinheiro e por uma vida glamorosa, exposta por muitos criadores de conteúdo. Um dos grandes problemas atuais com as redes sociais são os recortes de vida perfeita e a comparação, a todo momento fazemos comparativos e utilizamos como referência para a vida o recorte da vida do outro, muitas vezes trazendo aspectos como Lifestyle, vivendo vidas luxuosas e de grande poder monetário, o que não necessariamente precisa ser real, mas precisa parecer real e gerar o desejo a que está assistindo, contribuindo para adoecimento psicológico de muitas pessoas, em busca do recorte que lhes foi apresentado, busca essa irreal e quase inalcançável, compreendendo os aspectos sociais e econômicos, explica Bruna da Costa Couto, psicóloga clínica, que foca na abordagem da terapia cognitiva comportamental (TCC).

Bruna da Costa Couto - Arquivo Pessoal

Pensar cada vez mais em questões de saúde mental, significa também, pensar no futuro. Falar sobre esse tema não deve ser tabu, e sim, rotina. Enquanto o acesso a psicólogos e tratamentos continua sendo um privilégio para poucos, milhares de pessoas seguem sofrendo silenciosamente. A democratização dos serviços de psicoterapia é de fundamental importância para que pessoas de baixa renda possam acessar os cuidados com a mente. Falar sobre saúde mental é, acima de tudo, falar sobre direitos. Romper o estigma e ampliar o acesso ao cuidado emocional não é apenas uma demanda individual, mas um passo necessário para construir um país mais justo, empático e saudável.